
Madeira de dar em doido é jequitibá
Deixa a Mangueira passar
(José Ramos/ Zé da Zilda)
João Batista Gomes Filho (nascido no Ano da Graça de 1957) – o nosso Joãozinho Gomes – é um caboclo ribeirinho amazônida que se fez poeta pela experiência nesta terra. Ao assinar a composição do samba enredo oficial da Mangueira para o Carnaval 2026, Joãozinho reafirma sua condição de grande poeta e letrista da música brasileira, amazônica e amapaense. E, de quebra, ele eleva o nome do Amapá a paragens nunca antes alcançadas.
Afinal, uma Nação não se faz sem cultura literária, que, por sua vez, cria uma língua e se fortalece nas singularidades e nas diversidades. Foi assim com a língua portuguesa, que ganha o mundo como a “língua de Camões”; com o castelhano que floresce como a “língua de Cervantes”; com o italiano, conhecido como a “língua de Dante”, ou com o inglês, o “idioma de Shakespeare”.
Nessa linha, pode-se dizer que o Brasil brasileiro – não exatamente o do famoso samba de Ari Barroso, mas o pós-romântico que já não é mais colônia de Portugal – sustenta sua independência na obra monumental de Machado de Assis. Por isso, a nossa língua portuguesa – a corrente em uso no Brasil – essa “última Flor do Lácio, inculta e bela” – passa a ser reconhecida como o “idioma de Machado”.
Na obra literária e musical de Joãozinho Gomes, podemos perceber uma expressão amazônica, um complexo de língua e linguagem, que imprime diversos ritmos da vida de vários de nossos espaços e de suas gentes, recupera mitologias e narrativas africanas e indígenas e cobre de poesia o que esse vasto espaço, a Amazônia, evoca: sons, ritmos, imagens, ideias, palavras, cores, movimentos, afetos, “timbres e temperos”. Joãozinho joga a rede numa pesca diferente onde “a flecha passa” e volta com o que estava no raso e no fundo coberto de alga e lodo, fazendo emergir uma “Pérola Azulada”, que funciona como o Aleph de Jorge Luís Borges ou como o caroço de tucumã para o Alfredo dos romances de Dalcídio Jurandir. É mágica! É feitiço! É sina!
Engana-se quem acha que Joãozinho Gomes é aquele poeta encerrado num escritório bem refrigerado, esperando uma epifania chegar. Joãozinho é nosso, é brasileiro, é negro e indígena, é caboclo ribeirinho de “sabor açaí”. Joãozinho é esse sujeito verde e rosa, e não é de agora, pois que este ano mesmo ele foi homenageado com o enredo da Maracatu da Favela – escola de samba verde e rosa de Macapá, yes, nós temos samba e dos bons; taí o Francisco Lino e tantas outras figuras, que não nos deixam mentir. A Favela teve como tema “Amazonizar: o olhar do poeta Joãozinho Gomes em verde e rosa”, composição de Adelson Branco, Darllan Ribeiro, Flavinho Bento, Erick Boaventura e Tayson Tyassu.
Na minha tradução pessoal do verbo “amazonizar”, evoco o processo de transformação de tudo o que vivemos e pensamos em território amazônico, que é sagrado, como sabemos sentir. Mesmo no Estrangeiro, o que olhamos pode se transformar, por encanto, em coisa da Amazônia. É assim que podemos ler, sentir e ouvir a riquíssima obra de Joãozinho Gomes, alguém que serve um amplo cardápio de degustação do “jeito de ser do povo daqui”.
Vencer o concurso, sempre muito bem frequentado, de excelentes sambas-enredo da Estação Primeira de Mangueira para o Carnaval do ano que vem – tendo Joãozinho Gomes entre seus compositores, juntamente com Pedro Terra, Tomaz Miranda, Paulo César Feital, Herval Neto e Igor Leal – significa que nosso poeta tucuju, cada vez mais, se afirma como um dos grandes da música brasileira.
A “Mangueira é (mesmo!) uma floresta de sambistas”: é dessa “árvore-mulher” que saem ramos do quilate de Pedro Terra, jovem, mas já experiente compositor que emplacou o samba enredo da Mangueira de 2022 (“Angenor, José & Laurindo”); Tomaz Miranda, com o enredo da verde e rosa do Carnaval de 2019 (“História para ninar gente grande”); Igor Leal, que já desfilava sua competência em 2002, também em nome do pavilhão da Mangueira (“Brazil com Z é pra cabra da peste, Brasil com S é a Nação do Nordeste”); Herval Neto, debutando em composições de samba, mas já entrando com o “pé direito e muita sorte”; e Paulo César Feital, que emplacou o samba da Viradouro em 2016 e foi parceiro de Nelson Cavaquinho e Roberto Menescal, além de ter suas composições gravadas por outros grandes nomes da MPB, como Emílio Santiago, Chico Buarque, Alcione, Milton Nascimento e Beth Carvalho.
Sigamos com as raízes e suas ramificações musicais e poéticas, agora as da laia de Joãozinho Gomes. Com parcerias com artistas do calibre de Nílson Chaves, Lecy Brandão, Chico Cézar, Walter Freitas, Eudes Fraga, Jane Duboc e Zeca Baleiro, entre tantos outros ícones, Joãozinho cria uma cosmologia sua que é toda nossa ao dar dimensão estética e ilimitada ao imaginário do Planeta Amapari (essa beleza de obra de 1995, em parceria com Zé Miguel e Val Milhomem). É desse jeito que Joãozinho tece e forra o céu dessa “Constelação de Parentes”, termo com o qual os indígenas se reconhecem.
Não há quem não se emocione, ao menos um tantinho assim, ao ouvir os versos de “Jeito Tucuju”, que virou simplesmente o hino cultural do Amapá. Reconheçamos, pois, Joãozinho Gomes como o poeta que eleva o nome da Amazônia e do Amapá ao Olimpo da maior festa popular e cultural do Brasil, que é o Carnaval. Quem ouvir o samba da Mangueira deve reconhecer as digitais, o respeito e o amor de Joãozinho pela terra onde pisa, pelos rios por onde navega e pela cultura deste rico torrão do Amapá, que o poeta ajuda a enriquecer com o valor de sua arte e a doçura de sua voz. Salve a poesia que vence e abre caminhos! Evoé, Joãozinho Gomes!
Yurgel Caldas é professor de Letras da UNIFAP e orientador no PPGLET. Doutor em Literatura Comparada (UFMG) e pós-doutor pela Universidade de Lisboa, pesquisa temas como Amazônia, fronteiras, narrativas e violências simbólicas.